A ímpia

um conto de esquinas

Thiago Rocha
Contos Brasileiros

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“O anúncio da reencarnação” — Lorenzo Lotto

— Entra, filho, já vai escurecer.

— Mas já, mãe? Por quê?! Tá todo mundo aqui.

— Entra logo, não desatina!

— Tá bom, mãe. Tá bom… Tô entrando.

— Agora. Anda, moleque! Entra. E ai do Onofre se te entregar a minha gelada quente de novo. Ouviu, Onofre?! Pendura mais uma, mas vê se pendura direito!

O Sêo Onofre sempre acenava que não, o que algumas vezes queria dizer que sim. Era o que eu escutava do alpendre, sentada na extensão do portão feita para caber o Chevettinho com porta-malas, o xodó do papai, o menino dos olhos da vizinhança que não tinha ou não queria ter carrões de vidros escuros. Seu primeiro e penúltimo carro zero. A depender da brincadeira do dia, também de dentro da sala, eu escutava chamarem o menino dos meus olhos. O meu primeiro amor.

Foi da minha gaiolinha que um dia vi a correria destrambelhada em direção à casa da Dona Odara, precipitada por um estalo comum no bairro mas que desta vez assustou mesmo a turma que estava, como sempre, na mureta do terrenão baldio (“poleiro do gentio”, me alertavam em casa). Um dia de muita tristeza. O bilhete não foi para mim; a destinatária não teria se importado com ele. A crentinha era espeto.

Era lua vazia e rua cheia. Depois da missa, não demorava para a noite tropeçar no Fantástico e acordar na escola, por isso a molecada logo ia para fora aproveitar o tempo que restava. Eu não. (“Você, não; está tarde, filha.”) Celebrávamos a entrada de Jesus em Jerusalém. O menino decidiu que não. Bastava. (Já não me importa mais seu porquê.) Ele, que só um milagre explica ter sobrevivido a nascer com o peso que nasceu, cresceu com o peso de falhar o próprio nome. Naquele Domingo de Ramos, Almeidinha, que não servia para mártir, escolheu seu fim.

Escolheu virar santo.

Eram outros tempos. A gente tinha dois mundos: o sério — a casa — e o de brincar — a rua. Da casinha, brincava. Telefone era campainha, ligar era tocar ou chamar. E nem precisava tocar para chamar pois todo mundo sabia os horários: depois da escola; antes de escurecer. Boas vezes, também, depois do jantar. Chamavam em coro. Dava para ouvir até do quarto, menos quando o vinil tocava. Eu não estava propriamente ali. Mas, não me preocupava com isso; chamavam bem de vez em quando.

As meninas saíam mais quando o sol baixava. Eu saía quando a minha mãe podia ficar de olho. Gostava muito de ser a que a mãe ficava de olho. O meu pai desconfiava dos mais velhos que a turma. Tinha poucas meninas na turma. Com elas e as minhas irmãs, a gente era cinco. Éramos sete quando as primas vinham passar uns dias nas férias. Na verdade, a gente era seis — contando a crentinha. Mas seis é produto, não é número, e mesmo se fosse… A crentinha nunca contou. Exceto para o Almeidinha.

A gente tinha muitas coisas em comum, eu e ele. Uma delas era o jeito de estar não estando, de não estar estando.

Ele estava não estando o tempo todo entre os meninos. “Os guris”, eu falava, para parecer a minha prima que sabia de coisas. Àquela época eu queria ser mais ela. Hoje não, hoje me irrita que me confundam com ela. O Almeidinha estava por ali, sempre; porém, ao mesmo tempo, não estava. A cabecinha, moldada feito cerâmica, pensando outro lugar, espetada no corpinho menos desenvolvido dos guris. Eu achava tão bonitinho… Mas a minha mãe admoestava: “muita Coca, pouca cuca”. Cabeça de redondilha. Não servia para pique ou prega ou prego.

Sombrava.

Eu era a que mais não estava e estava na rua. No fundo, sabia que idealizava a liberdade que via no lado de fora. O que os olhos não veem, o coração sente dobrado. Também via olhares de admiração de quem tinha a rua como falta de opção. Mais voava do que saía. Éramos incentivadas a brincar com os brinquedos dos adultos. “Você pode ser o que você quiser, minha filha; você pode ir para onde você quiser. Começa aqui…”, o meu pai me dizia, dando um beijo na minha cabeça, “… mas, hoje, termina ali”. Era hora de cama.

Da casinha, avistava

Seu trabalho — o tormento

Almeidinha orava

A serragem do tempo

Os horários na escola ainda não coincidiam; era 5ª e 6ª e 7ª e 8ª. As duplas de séries se viam quando havia algum adiantamento na saída ou atraso na volta do intervalo. Era ótimo quando acontecia. Os corredores se enchiam de gente fazendo o oposto de correr. A turma inteira da rua estudava na mesma escola. Menos a crentinha, que não era bem da turma. Foi em um momento desses que falei com o Almeidinha pela primeira vez. A caçula conversava com ele e, me vendo, chamou. Ele não tinha sido assunto entre nós; não sei o que ela pretendeu quando me pôs na conversa.

— Ei, lembra dele? Ele mora na frente do Sêo Onofre.

— Oi. Oi! Lembro.

— Oi!

— Cê estuda aqui também, né? Legal.

— Estudo. Legal.

— Hum… E… Cê vem como?

— Andando.

— O meu pai traz a gente.

— Que legal.

— Cê vem sozinho?

— Às vezes.

— Hum… Legal, né?

— É… Tudo bem, também. Bom, vou indo. Preciso ir.

— Tá bom. A gente também. Tchau, tchau.

— Sim. Tchau.

— Tchau, Almeidinha.

Duas coisas: as férias forçadas da minha bancária mãezinha (computadores começavam a substituir a gente que computava dores) mais essa conversa na escola — que, se não foi bem um primor literário, foi quando tive a primeira lição de como diálogos podem ser incômodos — trouxeram a novidade de a gente passar a ver que se via e a se dar oi; depois oi e tchau; depois oi, tudo bem? e tchau; depois oi, tudo bem?, cê vai sair hoje? e tchau; oi, tudo bem?, oi, cê vai sair hoje?, cê vai na missa?, tchau; oi, cê vai sair hoje?, cê vai na missa?, volta com a gente, e tchau; oi, cê vai sair hoje?, cê vai na missa?, volta com a gente, e espera, e tchau; oi, cê vai sair hoje?, cê vai na missa?, volta com a gente, espera, e tchau, e espera, espera, espera: você gosta de mim?

Gosto!

— E tchau.

— Espera…

— Tchau!

— Espera!

Foi assim até ele começar a trabalhar para o pai dela. O meu, percebendo — mas sem nada comentar — o meu interesse, passou a incentivar que o Almeidinha estivesse com a gente. Ou ele não gostava muito ou não ficava à vontade, ou ambos, mas, graças aos incentivos da Dona Odara e à comida boa da mamãe, foi cedendo.

Mesmo às missas ele passou a ir. Não era muito a dele, que ficava desajeitado tentando imitar a rotina, olhando de soslaio quem estivesse por perto… E fitando e apressando o reloginho Casio e seus mil botões, prenda da rifa da última quermesse.

Em um dos jantares (ele era o último a terminar) soubemos de onde veio seu nome incomum já naqueles dias.

Prova de que era difícil não se divertir com o meu pai é que nem a pergunta impertinente chateou o menino.

“Não, senhor.” Não era De Almeida. Era Almeida. Só.

Almeida era o seu nome. Escolhido pelo pai. Comumente, um nome incomum se faz presente na vida de quem o tem. Vira um nome-entidade, um nome que existe por si e tem uma vida paralela ao da pessoa que o carrega. Não desaparece. Não se funde ao seu dono. É dono de si. Ainda mais no caso do Almeidinha, nome escolhido por quem ele tanto mais imaginava quanto mais admirava. Seu pai…

Que era doido por Nelson Rodrigues.

Contava a mãe, o pai gostava muito das crônicas de futebol… Mas não de futebol. Nossa… Teria sido uma figura, pelo e como o Almeidinha falava dele. Deslumbrado e emendando com as palavras em que confiava seu rumo, quase ofegava para não deixar ninguém por perto ficar sem escutar que o pai havia sido “um cabra bom, da cura e da cultura; um homão”. Contava de ouvir a mãe contar. Contava… E repetia.

E repetia…

E repetia: “Enfermeiro, se voluntariou no Exército e desapareceu em uma missão especial na fronteira com a Bolívia.”. Qualquer um da rua poderia repetir o roteiro em dueto com o guri, de tanto que ele citava, re-citava e recitava as palavras e histórias orgulhosas que ouvia de sua mãe. Que não deixava por menos e assim complementava nas raras vezes em que estivemos todos juntos:

— Nem viu o meu abajurzinho nascer. Nossa… — dizia à mesa.

Em seguida, se voltando para o filho e trocando o tom resignado pelo heroico:

— O teu pai sabia das coisas e já sabia tudo de você. Se lambuzava dizendo: “O meu moleque vai ser jogador, escritor ou presidente! É batata! Esse vem pra brilhar. Não vai nascer, vai estrear!” — ele dizia, lustrando o meu barrigão e olhando para cima.

O guri, que não fazia sentido e não tinha credo, foi batizado em glória ao Sobrenatural — e escolheu carregar a cruz que sobrava: em nome do pai, ele ia escrever.

A fama de menino quieto e diferente foi se misturando à de inteligente e esforçado, criando uma aura de expectativas. Não era o esquisito normal: embora quase não participasse das brincadeiras e jogos, estava sempre por perto delas, divertindo-se sem participar e, do seu jeito, participando. Um observador onipresente. Que estaria guardando os estímulos. O tempo calado foi pagando dividendos, pelo interesse das diferentes e quietas e das professoras, que achavam fofo o mirradinho que pouco falava — e não muito mais escrevia — dizer que ia ser escritor. E era fofo mesmo.

Fofocava, com alguma malícia, uma vizinha, que ele se destacava mais nas respostas do que nas propostas, eventualmente sendo o melhor aluno da classe, mas de jeito nenhum em Português. O que apontava que ele deveria ter o futuro que pretendia é que não deixava esses lusco-fuscos técnicos lhe afetarem e ia melhor nas redações do que nas outras coisas da matéria. Mas, algo deveria faltar ao Almeidinha: sequer venceu o concurso interno de redações, do qual, me parece, deixou de participar sem fazer alarde.

Já mais moço e percebendo que portar livros lhe abria portas — como as do pai da crentinha —, passou a frequentar a biblioteca no breve tempo que tinha entre a escola e o trabalho. Ainda acho que ele só ia ao trabalho por ela. Mas só para vê-la. O patrão deveria farejar a perfídia, pois não deixava que o Almeidinha tivesse palavra com a Rebeca. Se conversavam, conversavam escondidos. Disso tudo eu não tive certeza nenhuma, pois estávamos de volta ao oi-e-tchau. Também não tive certeza se ficava na biblioteca mais pelos agrados que a bibliotecária e as professoras lhe faziam do que para se cercar da coisa que ele dizia ser incumbido de produzir. Porém, nem o próprio Sobrenatural de Almeida explicaria que não tenha sido na estante da sua casa — onde os livros estariam até ao alcance do mirradinho — nem na biblioteca que ele tenha decidido ir a fundo no personagem que o seu pai previu para ele quando enfiou no menino a metade mundana do nome-entidade. Poderia ter parecido a ele só um bom peso para segurar os boletos — como me pareceu quando estive lá em visita com meu pai. Mas não. Não.

Ele tanto se interessou que a sua timidez deve não ter sido tímida pela primeira vez. Só assim para explicar que ele tenha começado a folhear A vida como ela é ali mesmo, ignorando o desacato que estaria cometendo e ficando alheio a outro livro de contos do Nelson que o pai dela mantinha (e tinha cara de preferir) e que, grotescamente, teria chamado mais a atenção do moço que já se estranhava e entranhava no corpinho: Elas gostam é de apanhar.

Outra certeza que não tive foi se ganhou, comprou ou pegou o livro emprestado. Mas isso não importa comparado à certeza que tive…

Era o dia seguinte àquele Domingo de Ramos. Ajudávamos a Dona Odara a limpar o quarto que, mesmo com a ausência de uma peça-chave na cena, havia sido descartado como homícidio e condenado a suicídio. Ela, a divertidona da rua, que estava sempre papeando com quem encontrasse pelo caminho que tantas vezes repetiu e se deixava ver e ouvir com seus terços, búzios, balangandãs, crucifixos e não sei mais o quê. Reluzia. Era um “Salve, salve!” para os colegas no Sêo Onofre e um “Que o Senhor abençoe essa molecada bola!” para a gente. Acontecia! Era um desfile. Do ponto de ônibus para casa, com a passadinha no bar do qual saía preparada para o fim do dia e o início da novela. Não cheguei a saber se ela saía com bons preparativos pois a nossa família evitava comprar do bar; mas, que eles eram insuficientes para a Dona Odara, as atravessadas de esquina do Almeidinha diziam que sim.

Do estalo comum no bairro à correria destrambelhada não passou nem um minuto. Correram do bar, da rua, de tudo quanto é canto — quando ouviram a mãe gritar. Como um revólver tão pequenino pode ser capaz de tamanho estrondo? Sua paternidade ninguém assumiu. Eu hesitei por um segundo; nunca tinha aberto o portão sem permissão; mas, por dois, não hesitei. Corri.

— Á.! Não! — a exclamação do meu pai a minha trancinha cascata deixou para trás.

Mas isso não importa comparado à certeza que tive.

A certeza que tive foi que não teria ironia no mundo que amenizaria ter visto aquele livro estourado pelo meio e ainda embebido do bento sangue do menino que se atirara por um final. Naquela confusão dos diabos, assim que bati o olho no escrito fatídico — que ou não tinha sido percebido ou tinha sido ignorado –, peguei-o, escondendo entre os meus dedos e o lado de fora do vestido. Agarrava o bilhete a sua mão direita, toda riscada pelos estilhaços no espírito e no santo. A última obra do meu primeiro amor. Jamais… Jamais vai fazer sentido ele ter feito aquilo — menos ainda por uma ímpia!

Quase nada legível sobreviveu ao vermelho, além do incompreensível.

O Sêo Onofre chegou empurrando a gente toda e a mim também. Caí sem soltar o papel e me escorando em uma cadeira onde jazia o uniforme da escola dobrado para o dia seguinte. Ainda sentia o tombo quando vi o homem se atirar sobre o corpinho, que então só pulsava por mero reflexo da carne. E que teria morrido de novo — e de tristeza — se visse a expressão do senhor seu pai.

Deus do céu… O que teria o Almeidinha querido dizer com “[…] não é porque sou pobre, é porque sou sincrético […]”?

A vida, como ele, foi.

Mais contos do autor no livro Um rim por um trago e oito contos previsíveis.

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Thiago Rocha
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Music Engraving & Book Design at PRESTO; degree: Composing & Conducting at UNESP (Brazil). Books on Amazon and Apple Books. https://linktr.ee/bythiagorocha