Toda memória

vamos colocar conversa na música

Thiago Rocha
10 min readAug 19, 2022

[Prefácio do livro Bolim Bolacho, de Manu Lafer — por Thiago Rocha]

Onde está a música em um texto falando sobre música? Aliás, por que escrever de algo que é para ser escutado? E quando se começou a escrever tanto de música, este assunto que hoje achamos irresistível?

INTRO.

O século XX gostou da ideia de cabelos expostos ao vento. Com ou sem lenço, com ou sem documento (há algum tempo, preferencialmente, sem). Bastava energia — cinética, mecânica etc.; qual fosse, seria. Herdamos este gosto.

Revolucionários. Redentores. Requebrantes. Cataclísmicos. Gostamos deles. Todos temos de memória a imagem de um ídolo assim. Novos Baianos Futebol Clube; Tropicália; Democracia Corinthiana; Panteras Negras; Jesus Christ Superstar; Jesus, Alegria dos Homens; road (trip) movies; David Lynch; Agassi-raiz; Kenny G.; Seiji Ozawa; rebeldes, hippies e roqueiros convertidos ao mainstream que se rebelaram contra o mainstream — tanto quanto o mainstream quis –, e prosperaram no cristal e na onda por três ou quatro décadas (a depender se tu contas Nevermind, do Nirvana, como o fim do rock ou seu recomeço)…

Palavras demais. Basta-nos uma: Beethoven.

QUEM NÃO COME DA CASTANHA (…)

Ludwig van Beethoven inaugurou muitos aspectos da música e, suspeita e previsivelmente, gostamos nós, músicos, de crer, também da arte. Sua irrupção mudou tudo. Chegou, mudou e ficou. É aquilo que Arthur Nestrovski sintetizou bem e (bem) mais ou menos podemos pôr como se segue: depois de Beethoven, somos todos pós-Beethoven.

Mas não qualquer Beethoven.

Habita no imaginário dos músicos um Beethoven-artista, alguém “cujos ideais e cuja visão do mundo pareciam menosprezar a quinquilharia artesanal da profissão musical” — como disse o compositor italiano Luciano Berio respondendo ao porquê de tanto se falar e escrever sobre música após a morte do gênio de Bonn. As cartas de Beethoven, contudo, na minha opinião (que é mais ou menos e conta bem menos do que a de Berio), parecem contar de uma outra persona: a de um sujeito que se dispunha a compor música equina, ranhetava com copistas, adulava poderosos, pedia empreguetes aqui, ali e acolá e que até choramingava por um colete de pelo de gato angorá; em suma, alguém com perrengues mundanos como não se conviria a um ídolo revolucionário, redentor, requebrante e cataclísmico. Mas há um fato inabalável até mesmo por essas cartas que demolem a imagem do Beethoven-artista que desdenha coisas pelas quais tantos artistas até suplicam. Este fato: a complexidade da música de Beethoven criou a (necessidade da) crítica musical tal qual não conhecíamos antes, criando, consigo, também, o esteta dedicado.

Foi um caminho sem volta e que, no mundo pós-Segunda Guerra Mundial — mundo este em que compositores de música clássica raramente não são também professores universitários –, trouxe a autocrítica erigida a um exercício profissional cujo principal produto direto não são músicas, mas textos. Um caminho da prática à teoria, da ação à fruição, do som ao silêncio. Senão, vejamos.

Falando do meio musical convencionalmente chamado de erudito, Berio afirmou que “o compositor começou a falar de seu trabalho e de suas ideias a partir do momento em que deixou de fazer música de maneira direta, deixou, ou quase, de ser um músico prático, de ser executante e de tocar cotidianamente um instrumento”. Isso pode explicar por quê na música popular, gênero em que predomina o músico prático (aquele que canta, toca, compõe etc.), pouco encontremos compositores que sejam também críticos musicais. (Provando a regra por duas exceções: a ubiquidade cultural de Verdade tropical, que, embora tenha como gênese a autobiografia, é um livro que vai muito além, como ou da crítica; as produções de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik, cancionistas que, sim, escrevem críticas muito (e) bem; outrossim, são professores universitários nas áreas da Semiótica e da Literatura, profissões para as quais o escrever é da ordem do dia.)

Na música erudita em que abundava o músico prático (retomando o termo usado por Berio), quase ou não havia compositores-escritores…

Até Beethoven.

Para averiguarmos isso, recorramos a Berio e seu senso histórico:

Chopin e Brahms, grandes pianistas, não nos deixaram escritos. Messiaen, grande organista, também não (…) Mas Schumann (que feriu um dedo e não podia tocar piano), Berlioz (que tocava violão muito mal), Wagner e Schoenberg (que certamente não eram virtuoses de seus respectivos instrumentos, piano e violoncelo), deixaram-nos uma quantidade significativa de escritos.

Isso posto, cabe enfatizar que a música erudita, aqui, não vem tanto ao caso (embora já tenha vindo nas páginas anteriores). Manu Lafer, o Manu, por vocação e opção, compõe música popular e escreve letras de música popular até falando (de) apocatástase:

Nunca quis ser erudito, menos ainda pretensioso, fazendo canção popular.

Convém contextualizar de que tipo de música estamos falando.

As diferenciações entre música erudita e música popular, canção popular e canção erudita, música e canção, dificilmente resistem a contra-exemplos limítrofes, mas se há uma que valha à pena, penso, é esta do Tatit:

A boa vizinhança entre música e canção não chega a confundir os campos de ação, visto que um grande músico só excepcionalmente está apto a fazer uma bela canção e quando isso ocorre é à custa de muito exercício composicional. Já se sabe há mais tempo que um bom cancionista também está longe de ser bem-sucedido na concepção, por exemplo, de uma peça sinfônica, salvo se abraçar de vez a causa musical. A mesma correlação pode ser feita no domínio das palavras. Embora haja identidades inegáveis entre poemas escritos e letras de canção, o poeta jamais se torna automaticamente um bom letrista e vice-versa. São áreas que exigem habilitação própria.

(…) NÃO PERCEBE DO CAJU

Que Manu, este músico com tantas décadas de vida quanto de música e com mais centenas de músicas do que décadas de vida, tenha feito uma pausa — outra — em “anos de silêncio, sopros e sopranos” e escrito Bolim Bolacho é, pois, uma satisfação para quem gosta de música ou de crítica (mais raro do que músico prático que deixe escritos críticos é quem goste das duas coisas, música e crítica). Seu livro, este, traz à tona e à nota um cancionista que pensou o que fez e, podemos dizer sem nos arriscar, pensa no que faz. Afirma ele sobre o livro:

Nos meios acadêmicos, definiria como um ‘memorial das canções que gravei [grifo do crítico da vez], para consulta por álbum ou obra. Consulta com escuta, sem a fluência de uma leitura corrida.

Mas, do que fala este memorial?

Antes de cotejarmos isso, cabe novamente perguntar, e não apenas para fins retóricos: ao escrevermos sobre música, estamos escrevendo exatamente sobre o quê? Aliás, nesse tipo de questão, há alguma exatidão possível? Em suma, onde está a música em um texto — um memorial, por exemplo — que fala de música?

Perguntar “onde está a música? é perguntar “o que é a música?. Uma investigação desta monta é de tão longo alcance que talvez não fosse aceita nem por Kaiser Lupowitz, o detetive do conto O Cara, contratado por uma musa fatal anti-Nietzsche para encontrar ninguém menos do que Ele — D(e)us –, mas foi notavelmente levada adiante pelo compositor brasileiro Edson Zampronha, quem, sintetizando a questão, elucidou que a música “nunca aparece como um objeto no sentido clássico do termo (…), como um elemento ou uma coisa, mas [sim] como um processo”.

Em Bolim Bolacho, por diversas vias, é de seu processo que Manu fala: suas referências musicais e culturais, seus diálogos musicais, suas letras, suas músicas, suas parcerias, sua outra atividade profissional, suas origens, suas crenças… A cousa toda, o processo que leva o autor a ser quem é e, portanto, a compor, cantar, tocar, gravar e a escrever do jeito que, no cômputo geral, é (d)ele.

Enfim, retomando a questão que nos trouxe até aqui: onde estaria a música de que fala Lafer? “Ela só pode estar, pois, em um lugar: um não-lugar que é o próprio processo, a diferência, o rastro, o traço”, creio que responderia Zampronha.

Mas o autor tem outros interesses discursivos neste livro, que não é uma auto-exegese nem é ontológico (para usar palavras mais ásperas do que apocatástase). Seu processo é explicitado de jeitos outros.

Se, como diz Manu da Música de frente, o antídoto para o hábito social de se colocar música de fundo é colocar música na conversa, podemos concluir que o que Manu faz neste tomo — nomeado tanto jocosa quanto apropriadamente Bolim Bolacho — é colocar conversa na música [grifo do crítico do crítico da vez]. Ou seja, o livro é uma extensão de sua trajetória de ora colocar palavra na música, ora música na palavra (dualidade esta que seria uma definição do que seja compor canção — poderíamos dizer, embora, como lido ali para trás, algo assim já tenha sido dito, e melhor, por Tatit).

A conversa que Lafer coloca na música revela aquilo que as suas composições, que são tão diversas que às vezes parecem ser criações de heterônimos, já apontavam: trata-se de um artista-pensador. Caindo na tentação reducionista de classificar sua produção — uma ação de pouca valia que sempre é melhor evitar mas que, infelizmente, não evitei –, seria como pós-moderno. Porém, classificar algo ou alguém como pós-moderno não agrega (quase) nada. Não obstante, visto que a utilidade desse termo é ter entrado no repertório, sigamos com ele.

Quiçá os termos do arquiteto italiano Paolo Portoghesi aproxime-nos do que Manu produz:

O pós-moderno revalida a ambiguidade e a ironia, a pluralidade dos estilos, o duplo código que lhe permite voltar-se ao mesmo tempo para o gosto popular, através da citação histórica ou vernácula, e para os especialistas, através da explicitação do método compositivo e do chamado jogo de xadrez da composição e decomposição.

Inicialmente, Bolim Bolacho seria o livro de comentários a Thesaurus.

Foi além.

Embora Manu alegue conversar de coisas das quais não entende “nada”, o que tu encontrarás neste memorial é gratificantemente mais: um amplo e abrangente mapa “sobre isso e aquilo”, memórias nas quais o autor se localiza e que perpassam as músicas que ele gravou, sejam as composições só dele, composições com parceiros ou interpretações de composições de outrem. Não tenho certeza de que um mapa seja a melhor imagem para evocar o que evocam tantos músicos, pensadores, poetas, escritores, filósofos etc. evocados na prosa cativante e modesta deste douto de poucas palavras e muita música. O que tenho certeza é que Manu falou de si da maneira pela qual é possível ser coerente.

Para evocar mais uma vez (aquiesço, já deu, não cabe mais usar o verbo evocar; esta foi a última vez) Berio (aquiesço, novamente: já deu também, esta é a penúltima menção ao compositor italiano):

Um músico pode falar coerentemente de si próprio, sobretudo falando dos outros, da atualidade e do passado (…) Schumann escrevendo sobre Chopin completava e imaginava a si próprio, Berlioz escrevendo sobre Beethoven projetava a si próprio, Debussy escrevendo sobre Mussorgsky descrevia a si próprio, do mesmo modo que Schoenberg escrevendo sobre Brahms e Boulez escrevendo sobre Berg.

A devoção com que Manu Lafer fala neste livro de memórias sobre seus ídolos e referências é tamanha que ficamos com a vontade e esperança de que, em algum momento futuro, ele faça outra — outra — pausa e escreva detidamente sobre cada um deles e delas e que componha e siga compondo em diálogo com cada um deles e delas. Afinal, “os edifícios que se inspiram em outros edifícios da história são mais significativos do que os que neles não se inspiram”, disse o arquiteto americano Robert Stern.

Porém, “toda memória tem seu preço”, escreveu e cantou Manu. O caminho da significação é o do autoconhecimento e, portanto, da autocrítica. Custa.

Escrever custa. Escrever — memórias, por exemplo — custa, por exemplo, não estar compondo, o que é um custo alto para um compositor. Escrever é, também, um desnudar-se em tempo diferido que poucos têm a ousadia ou desfaçatez de enfrentar.

Ainda mais alto é o preço se pensarmos como o Berio (enfim, a última menção): o melhor comentário sobre uma música não é texto nenhum, é outra música. Ao ler este livro, talvez discordemos dessa afirmação peremptória.

Concordando ou não com ela, contudo, é fácil reconhecer que neste mapa-investigação não teria cabido — nem teleologicamente seria possível ou desejável — toda memória (e isso antes mesmo de questionarmos o que seria essa tal toda).

Não teria cabido toda (a) memória, mas coube muita, coube muito mais do que a prosa modesta e cativante e o título deixam antever. E é bom que assim tenha sido, pois, no fim, o texto que fica não é o que se pretende permanente, mas o que é, por genuína cordialidade e despretensão, permeável.

Se, de um lado, canções como Afeto santo, A lente do homem, Cidade inacabada, Conversa de Japi, Elevador, Sambadobrado, Ta shemá e outras notáveis já falavam por si e falam de um dos grandes compositores do Brasil — grande mesmo se consideradas, além das populares, também as músicas eruditas e impopulares –; de outro, em Bolim Bolacho, fala o escritor a quem temos o prazer de escutar, perdendo-nos em memórias e encontrando-nos no imemorável.

CODA

O livro Bolim Bolacho é o encontro da arte do compositor com o escritor — duas moedas com a mesma face. Não precisarias tê-lo começado pelo prefácio, mas, se o fizeste, concordamos, já tiveste de preâmbulos o bastante. Aliás, perdoa-me por não ter dito esta obviedade antes de tudo: o que mais importa se inicia a seguir.

Daqui em diante, “é tudo que eu não sei contar”.

Viremos esta página.

Referências bibliográficas (e discográficas)

  1. Arthur Nestrovski. As ironias de Beethoven. In: Tudo tem a ver: música e literatura. São Paulo: Todavia, 2019.
  2. Luciano Berio. Entrevista sobre a música contemporânea. Realizada por Rossana Dalmonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
  3. Ludwig van Beethoven. Cartas, diários, cadernos de conversação e reminiscências de contemporâneos. São Paulo: Editora Veredas, 2006
  4. Caetano Veloso. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  5. Luiz Tatit. Estimar canções: estimativas íntimas na formação do sentido. São Paulo: Ateliê Editorial, 2016.
  6. Woody Allen. O Cara. In: Cuca fundida. Porto Alegre: L&PM, 1978.
  7. Edson Sekeff Zampronha. Onde está a música? In: ARTEunesp (volume 12). São Paulo: Edunesp, 1996.
  8. Fabio Tagliaferri e Manu Lafer. Música de frente. In: Só um e muito só. CD. São Paulo: Tratore, 2006.
  9. Bordão de autoria do apresentador do programa de rádio O Samba Pede Passagem, Moisés da Rocha.
  10. Paolo Portoghesi. Depois da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  11. Manu Lafer. Thesaurus. Atualmente, há cinco volumes publicados como ebook. Edição: Presto. (Disponível na Amazon.)

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Thiago Rocha

Music Engraving & Book Design at PRESTO; degree: Composing & Conducting at UNESP (Brazil). Books on Amazon and Apple Books. https://linktr.ee/bythiagorocha